domingo, 9 de março de 2008

Mulher Sertaneja

Por Luciana Rabelo
luciana.rabelo@gmail.com

No dia 8 de março de 1857, dezenas de mulheres foram carbonizadas por reivindicarem seus direitos. Na mesma data, sendo o ano 1906, nascia Joana Luiza de Jesus, minha vó, mãe de meu pai, a quem chamávamos de vovó-papai. Apesar de não gostar dessa marcação de tempo ‘gregoriana’, acho bastante simbólico este dia ser lembrado como o Dia Internacional da Mulher, pois pra mim esta data realmente representa a mulher, guerreira por essência.

Este ano faz 102 anos que ela apareceu por aqui. Mulher raçuda, negra, filha do Sertão pernambucano, Joana Luiza de Jesus aos 24 anos engravidou após um namoro com meu avô. Digo após UM namoro porque, pelo que sei, eles se conheceram numa festa em Santa Maria (Tupanaci) – vilarejo pertencente hoje ao município de Mirandiba, onde ela morou desde moça – e ela engravidou. Não sei da vida amorosa dela, o que muito lamento neste momento, pois há dez anos ela se foi pro lugar misterioso e eu nunca conversei com ela sobre esse assunto. O que sei mesmo é que ela é realmente o símbolo da mulher guerreira. Enfrentou todos os preconceitos, lá pelo início da década de 30, num pequeno povoado à beira do rio Pajeú. Para sustentar meu pai ela, analfabeta e cheia de sabedoria, lavou muita roupa nas águas pajeuzeiras. Nunca deixou faltar nada ao menino Zé de Joana.

Apesar de eu sempre ter morado longe dela, sempre a via nas férias. Às vezes (muito poucas) ela vinha estar conosco na capital, e outras (mais freqüentes) íamos a Santa Maria vivê-la. Uma das coisas que muito me admirava quando chegávamos lá era o rio. Isso porque para chegar à vila, tínhamos que atravessar o Pajeú. Quando ele estava seco, o carro passava. Às vezes estava com pouca água e dava pra passar, mas lembro que eu ficava com medo vendo o carro ‘nadar’. Quando o rio tava cheio, tínhamos que deixar o carro do lado de cá e atravessar andando, com as coisas na cabeça. E era muita bagagem, porque sempre minha mãe levava muitas roupas para dar, além de brinquedos, balas, biscoitos. Aventura boa!

O que mais tinha por lá era criança. E eu pequena passava o tempo todo a brincar com meu povo. Era outra realidade. Eu menina da cidade, sempre tendo morado em prédios, vida classe média, lá encontrava o mundo natural. Nós, quando chegávamos, éramos a atração do povoado. Os jovens logo corriam pra procurar meus irmãos mais velhos. As crianças vinham a mim e a minha irmã. E os senhores e senhoras iam depressa rever mainha e painho. Minha vó era só alegria.

Pois é, às margens do Pajeú, escondido no Sertão pernambucano, existe um dos lugares mais lindos que já vi. Onde ninguém imagina que haja vida humana, tá lá, um monte de criança, velhos e jovens ardendo no sol quente, nadando no rio, tangendo gado, comendo bode e galinha, ‘tomando umas’ nos dois ou três botecos, sentando na praça, indo à igreja, vivendo a Natureza.

A casa da minha vó é daquelas que tem uma portinha de madeira dividida no meio, onde só a parte de baixo fica fechada pros bodes, cachorros, gatos, galinhas não entrarem. Na calçada, cadeiras de balanço, daquelas de tiras de plástico e que balançam mesmo. Eu até às vezes tinha um certo medo de virar pra trás de tanto que a cadeira emborcava. A água para beber tirávamos com um caneco de alumínio de dentro de grandes potes de barro. A comida, temperada com muito coloral, era feita num fogão de barro. Se não me engano era a única casa que tinha banheiro, pois meu pai havia mandado dinheiro para construir. Lembro muito também do papagaio. Era bem falante e morria de ciúme da minha vó. Meu pai conta que ganhou ele quando era moço. Então, nesta época, o papagaio já era ‘meio veínho’. Ele falava: ‘Joana’ e ‘ô de casa?’.

A gente sempre ia pra lá na festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição. Era um festão. Vinha gente das vilas e municípios vizinhos, Serra Talhada, Floresta...Uma das atrações - fora a missa e a procissão – era o leilão que ocorria na frente da igreja. Leiloava-se de tudo, manteiga, ovo, cachaça, galinha...Eu ficava assistindo o leilão inteiro. Tinha também um bingo. Uma vez, quando eu já era adolescente, eu ganhei o prêmio máximo: um bode. Eu não quis nem ver o bode, porque logo que eu o ganhei acertaram de comer uma buchada no dia seguinte. Fiquei morrendo de pena e preferi não conhecê-lo, nem comê-lo. Se fosse hoje em dia não deixaria matá-lo não.

Quando chegava o momento de minha mãe distribuir os doces e brinquedos era fantástico. Eu logo me escalava pra entregar as sacolinhas para as crianças. Era linda a alegria delas. Uma fila imensa se formava em frente à casa da minha vó. Não sei de onde surgia tanta criança. Todas saíam satisfeitas.

Relembro claramente uma vez que fomos pra lá no feriado da Páscoa e presenciei uma brincadeira, que era ‘malhar o Judas’. Eu era pequena e não entendia. Tinha muito medo. Só via homens correndo atrás de outros homens com um boneco e achava tudo muito violento. Mesmo as pessoas me falando que era brincadeira, não achava que fosse. Não gostava.

O momento triste da nossa viagem era, exatamente, na hora da despedida. A gente se ia, com um nó na goela e no peito, e ela ficava em pé na calçada chorando.

Hoje entendo muito bem porque minha vó nunca quis sair de lá, mesmo quando estava doente. Vivia humildemente, mas com verdade, com naturalidade, pisando na terra, fumando seu cachimbo, abençoando as centenas de afilhados, se balançando na cadeira na calçada em frente de casa.

Sempre que a gente tomava a benção a ela, ela dizia: Deus te dê fortuna! E temos recebido realmente muita Fortuna ao longo dessa vida. Ela se foi tendo o maior sonho da vida dela realizado: ver o filho vencedor nesse mundo de tantas contradições.

Luciana Rabelo é jornalista, poeta, educadora e integrante do Ventilador Cultural

5 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pela avó, fia!
Mas você ão fica atraz, visse?
Cheiro
Anderson

Anônimo disse...

Linda a história da sua avó, eu e meu esposo somos de Mirandiba.
Nos emocionamos ao ler...

João Diniz disse...

Sou natural de Tupanaci, posso dizer que um lugar Belo,conheci muito bem " mãe Joana", é como eu a chamava, junto com meus irmão. Não conheci muito o seu pai, mas ele deve lembrar de Dona Adauta a professora dele que é minha mãe.
Tenho um blog da Vila de Tupanaci: http://tupanacisantamaria.blogspot.com/.
Fala um pouco dessa terrinha, mas logo estarei contando todas as histórias narradas pelos moradores.

E quero parabeniza La por este artigo.

João Diniz Carvalho

jose benigno diniz disse...

sou filho natural de tupanaci{santa maria}eu conheci dona joana quando eu era pequeno quando no final da missa sempre minha mae iamos pra casa dela que ficava ao lado da igreja,ela nos recebia com toda grandeza do mundo, isso deixou muita saudades.

Anônimo disse...

Muito emocionante os seus relatos sobre Tupanaci, também tenho origem naquele lugarejo, mas infelizmente, só pude conhecê-lo há pouco tempo (2007). Confesso que tive inveja (no bom sentido) sua por não ter vivido lá essas experiências de infância. O meu pai (Zé Cassimiro ou Zé Constância)apesar de sempre nos contar histórias de Santa Maria, das suas grandes colheitas, da famosa festa da Padroeira, dos seus parentes,etc., nos envolveu pouco com os seus familiares e não nos levou para aquele lugar mágico. Parabens! Pedro Lira