quinta-feira, 1 de julho de 2010

A TV Pernambuco PODE se tornar a primeira emissora pública no Brasil com rumos definidos pela sociedade, não pelo governador.

(Matéria especial publicada na Revista A Rede, na edição 59)

Por Patrícia Cornils

ARede nº59 - Há algo novo acontecendo no Recife – e isso não é surpresa. Afinal, desde 1992, quando o Manifesto do Mangue, “Caranguejos com Cérebro”, veio a público, o desejo de revitalizar a cidade, expresso por toda uma geração conectada com o mundo, injetou energia no caldo de diversidade cultural que o Recife já tinha. Apropriadamente, o símbolo do movimento era uma antena parabólica no meio dos manguezais da cidade. Quase duas décadas depois, com a cena cultural de Pernambuco reconhecida por todo o país, os recifenses estão literalmente tomando a parabólica de assalto: no final de fevereiro, a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado, à qual está subordinado o Departamento de Telecomunicações de Pernambuco (Detelpe), que controla a TV Pernambuco, nomeou herdeiros do manguebit para os três cargos de direção da emissora. Trata-se da primeira experiência brasileira de construção de uma TV pública de baixo para cima e os protagonistas desse movimento são os herdeiros do manguebit, não apenas na sua vertente artística, mas na politização das suas ações.

Na presidência está o articulador cultural Roger de Renor, que traz consigo o apoio de associações, sindicatos, movimentos, uniões de artistas, produtoras, músicos, artesãos, documentaristas, mulheres, grupos de teatro, grupos hip hop, compositores. Com ele, entraram também o músico e produtor Adriano Araújo e o publicitário Guido Bianchi – e entrou a sociedade civil, representada por um Grupo de Trabalho cuja tarefa era apresentar, em 90 dias, um diagnóstico da emissora e propostas para sua gestão futura. Esse processo se encerraria no dia 8 de junho, quando o grupo deveria apresentar, em audiência pública, o resultado de seu trabalho. Que não foi feito a portas fechadas, mas em três audiências públicas das quais participaram, em média, cem pessoas. Três pontos foram debatidos: 1. Para que serve uma tevê pública, 2. Gestão de uma TV pública e 3. Tecnologia.

DESEJO E PROCESSO
Entre as propostas enviadas pelo estado para a Conferência Nacional de Comunicação, no ano passado, cinco diziam respeito à necessidade de criação de uma rede pública para servir à sociedade, e não aos governos, com os meios do estado: a TV Universitária, a TV Pernambuco e a Rádio Frei Caneca, uma concessão municipal que nunca foi implantada. Antes, em maio de 2009, esse projeto fora apresentado também em forma de um manifesto e em articulações com representantes dos governos federal, municipal e estadual.

“Pernambuco é um território que tem uma produção cultural rica e diversa, de excelência reconhecida nacional e internacionalmente na música, no cinema, nas artes plásticas. em variadas formas de representação teatral e na dança”, dizia o manifesto e prosseguia: “Pernambuco tem o privilégio de dispor de meios de comunicação de massa estatais – dois canais de televisão com alcance potencial para cobrir grande parte do Nordeste; rádios AM e FM em funcionamento e concessão de rádio para se efetivar. Entretanto, Pernambuco não utiliza esses canais para valorizar e incrementar sua produção cultural, seus artistas e técnicos, todo o universo humano, toda a atividade socioeconômica que cerca o fazer cultural”.

Inamara Melo, que hoje participa do grupo de trabalho que apoia a direção da TVPE e faz a interface com as demandas da sociedade, pondera que “houve uma coincidência entre o desejo de uma série de produtores culturais e movimentos no estado e o debate crescente sobre o direito à comunicação, que saiu do ninho dos especialistas no processo da conferência, e ganhou visibilidade”.

Nesse processo, além das audiências públicas, os pernambucanos também podiam mandar sugestões por email ou, como fez Jorge Fieza, por vídeo. Fieza, 19 anos, fez uma enquete sobre o tema em sua cidade, Caruaru, gravou sua contribuição no melhor tom de âncora global e postou no YouTube: “Quando, durante a enquete, eu ouvi: ‘Bom mesmo será quando a MTV chegar’, lembrei que até agora quem domina a televisão no interior do estado são a Globo e o SBT. É importante que a TVPE chegue ao grande público antes das outras (…) e que tenha foco no interior, onde as pessoas ainda são [suscetíveis] a influências d[os grandes meios de comunicação d]e massa. Que elas sejam preparadas para quando a grande mídia chegar. Programas com propostas mais jovens e dinâmicas é o que eu indico. O ‘Lobotomia’ e o ‘MTV Debate’ (ambos da MTV), e o ‘Agora Curta’ (da Globo) são exemplos de programas com formatos simples e de alto valor cultural, ideais para uma nova TVPE.”

TRANSPARÊNCIA
Mas o problema é muito maior do que definir a programação. “Muita gente veio nos dar ideias de programas bacanas”, diz Roger. Ele próprio tem dois programas, o Sopa de Auditório (TV Universitária) e o Som na Rural (TV Brasil). O Sopa, aliás, debatia toda segunda-feira justamente a comunicação na tevê. Mas, diz Roger, não é o caso de escolher um programa ou outro. “Mais importante é que todo mundo possa colocar sua programação na tevê pública, ou seja, é a gente criar um processo transparente de escolha de programação”, explica Ivan Morais Filho, jornalista, integrante do Centro de Cultura Luiz Freire e do grupo de trabalho da TVPE. Porque tevê pública é quase sinônimo de controle e de participação social na gestão. Um exemplo prático de como isso pode funcionar já foi dado no processo de elaboração do projeto para a TVPE, que deverá ser apresentado ao governador depois da audiência pública.

O grupo de trabalho propõe opções e soluções em duas frentes. A primeira é de transição, emergencial, e se concentra em medidas de curto prazo, para que a emissora se aproxime mais dos pernambucanos. O mote “Essa TV vai pegar”, frase de Roger, resume bem a meta neste primeiro momento: recuperar o parque de transmissão da TVPE, com investimentos já assegurados pelo governo, de R$ 2,4 milhões, para que o sinal chegue melhor e a mais lugares. Hoje, ela transmite para cerca de 80 municípios. A meta é dobrar esse número e melhorar o sinal na capital, onde ele é ruim. Além disso, vai-se formar um conselho diretor com representação da sociedade, para auxiliar a direção da emissora nesse período de transição.

A segunda frente trata de medidas para transformar a TVPE, de fato, em uma emissora pública. Criar um novo marco legal para a TV, que precisa ser apresentado e votado pela Assembleia Legislativa; criar um fundo de financiamento que tenha aportes tanto do governo do estado, por meio de um porcentual de suas verbas publicitárias, quanto das empresas, por meio de isenção de impostos; estabelecer como contrapartida para as produções financiadas por recursos públicos que elas sejam veiculadas pela tevê pública; decidir se o veículo de administração da tevê será uma fundação ou uma empresa pernambucana de comunicação; e estabelecer amplos canais de participação da sociedade na gestão da emissora, para que ela não fique à mercê das decisões do governador da vez.

Tudo isso ainda precisa ser inventado. De acordo com Regina Lima, que há dois anos preside a Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais, ainda não existe no Brasil um marco legal para a tevê pública. “A TV Cultura do Pará, que está sob a nossa gestão, recentemente passou de fundação pública de direito público para fundação pública de direito privado”, explica. “Isso já nos deu uma maior flexibilidade e independência para trabalhar. Mas o marco legal ideal da tevê pública por aqui ainda não está consolidado. Precisamos construir isso juntos.”

O pior é que tudo precisa ser inventado a partir de estruturas arcaicas. “Parecia um barco sem destino, que brigava somente para continuar flutuando”, lembra Roger, ao descrever a situação em que se encontrava a emissora quando ele assumiu a presidência. Criada pelo governo do estado em 1994, a TVPE foi abandonada durante a gestão de Jarbas Vasconcelos (1999-2006) e continuou sem rumo depois da eleição do governador Eduardo Campos. Perdeu o canal 9, um canal privilegiado, ao lado das tevês comerciais, logo ocupado pela Bandeirantes. Em 2008, foi envolvida em denúncia de uso de seus equipamentos na campanha eleitoral de André Luís Farias (PDT), candidato a prefeito de Olinda e ex-presidente do Detelpe, departamento encarregado de administrar a TVPE. Sem investimento na rede de transmissão, o sinal da emissora, que transmite hoje no canal 46 (UHF), deteriorou-se. Mas agora o barco ligou as máquinas.

Pela primeira vez na história do Brasil – se o governador encampar a proposta – a sociedade é quem vai dar rumo a essa nave. “Os passos dados até agora vão nessa direção”, escreveu na Carta Maior o sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho, que também é ouvidor da TV Brasil. “Mesmo sofrendo algum percalço, [esses passos] já são suficientes para entrar na história da televisão brasileira” afirmou Lalo. Daqui para a frente, diz ele, o projeto da TVPE servirá “de modelo para qualquer outra construção participativa de um meio de comunicação de massa que vier a ser feita em nosso país”.